Há legislação suficiente para justificar quaisquer atitudes contra a violência
No início da minha carreira,trabalhei como advogado na assistência judiciária (advocacia gratuita) da Ordem do Advogados.Era o dia do meu plantão e algo inusitado aconteceu.Trabalhávamos,entre outras coisas,com muitos casos de violêmcia doméstica,de todos os tipos,mas aquele caso é digno de ser lembrado.
Tratava-se de um homem que chegou bem desconfiado.A secretária informou que ele só aceitaria ser atendido pod mim.Não que ele me conhecesse,mas queria ser atendido por um homem,pois três colegas de atendimento eram mulheres.
Achei estranho,mas aceitei,pois,quando as pessoas procuram um advogado,muitas vezes já estão emocionalmente fragilizadas.Ele se aproximou e foi direto ao assunto:"Doutor,estou com um problema sério."Depois de mostrar alguns ematomas,informou que era espancado frequentemente pela esposa.Tive vontade de rir (posstura de um advogado jovem e inexperiente).Minhas colegas reagiram da mesma forma (as mesas ficavam na mesma sala).
Ele percebeu nosso deplorável preconceito,mas suas lágrimas de vergonha foram a maior lição da minha vida.A violência dói demais e a vergonha que ela gera dói mais ainda.Respirei fundo,repreendi a mim em pensamento e às minhas colegas com um olhar não muito agradável.depois de um pouco de atenção verdadeira,recobrei a confiança daquele fráil cliente.
O problema dele foi resolvido.Até hoje,ele nutre grande gratidão à nossa antiga equipe,mas,na verdade,ele é que merece nossa gratidão,pois nos ensinou que para quebrar o silêncio não é preciso ter só coragem.É preciso quebrar não só coragem.É preciso quebrar não só o preconceito pessoal,mas também o preconceito das autoridades e semelhantes.
Avanço
A legislação brasileira tem avançado muito no aspecto de proteção das minorias ou partes socialmente frágeis.Há o Estatuto da Criança e do Adolescente,que foi um grande avanço.Tive contato e estudei com os autores do Anteprojeto do Estatuto,e grande parte dos objetivos já foi alcançada.No mesmo sentido,está o estatuto do Idoso,que protege o outro extremo.Finalmente,não mais ligada à idade,mas ao gênero,está a Lei Maria da Penha,que visa a coibir a violência contra a mulher.Todavia,mesmo que nenhuma dessas leis existisse,a Constituição não só do Brasil,mas de quase todos os países,já seria suficiente para coibir qualquer tipo de violência.
Qual seria,então,o problema?O que dificulta a efetividade dessas leis?Onde está o elo perdido que ligaria os comandos da lei ao verdadeiro cessar da violência?A resposta está com dois grupos de pessoas:as vítimas e os omissos.Ambos "culpados".
Omissos
Tem-se a ilusão de que a violêmcia exclusivamente dela.Grande engano!Muitas vezes,o vizinho que espanca esposa e filhos é simpelsmente ignorado.A criança que é abusada e exposta não tem qualquer efeito sobre a vida da professora.Os filhos que abandona pais descuidados "sabem o que fazem". O médico atende uma adolescente violenta,mas sua responsabilidade é restrita ao ferimento físico.a mãe respeita o pai que ultrapassa os limites e causa ferimentos graves ao corrigir os filhos.Extensa seria a lista dos omissos,mas o leitor pode expandir a partir de sua própria experiência.
No entanto,a violência atinge a todos.A maioria dos casos de omissão é punível pela lei.Todavia,a maior consequência não é de natureza legal,mas social.a impunidade experimentada pelos agressores cria uma conjuntura de medo e represão.Nenhum preconceito que justifique a omissão deve inibir a atitude correta diante da violência.
É essencial que se quebrem os paradigmas de uma sociedade preconceituosa e se entenda que a privacidade,o pátrio poder,o respeito à individualidade,o sigilo solicitado pelo agredido ou o simples fato de não mensurar qualquer relação da violência com a vida própria não deve ser culpada para a omissão.Lembre-se de que a violência é problema de todos,pois fere não uma pessoa apenas,mas a dignidade humana,que precisa ser defendida não só pela Constituição,mas por todo cidadão.Muitos morreram para que entendêssemos o dever de não silenciar diante da violência.
Vítimas
Por incrível que pareça,a maioria das vítimas não admite essa condição.Muitas se condicionam à agressão e pensam que isso é "normal".Comecei este artigo contando o caso de um homem que foi violentado pela esposa durante anos.Ele teve que vencer um preconceito pessoal e social para buscar ajuda.Felizmente,rompeu seus falsos paradigmas e reconquistou a dignidade.
Se quem lê este artigo é vítima,vença o medo e o preconceito.A vida tem muito valor para que você a entregue a um agressor.Pode ser que o agressor respeite sua decisão e trate você com dignidade.Mas se isso não acontecer,não se incomode,pois há muitos meios para a recuperação de sua dignidade.
O primeiro deles é a decisão de quebrar o silêncio,após admitir que é vítima de violência.Comece buscando ajuda das pessoas próximas.Se não for possível,procure o Ministério Publico (Promotor)- presente em todas as cidades.Se não houver Ministério Publico,procure a Polícia.Se não conseguir,procure a Ordem dos Advogados ou qualquer advogado na cidade.Provavelmente,ele não ficará omisso diante de sua necessidade.Se ainda assim não conseguir,busque auxílio de uma pessoa publica e que possa ajudá-lo:pastor,padre,líder comunitário.Em casos extremos,procure todos de uma só vez.
Quem desperta para a necessidade de uma vida digna não pode desistir.A violência não pode ser aceita por ninguém.Seja criança,idoso,mulher,portador de necessidades especiais ou um homem,ninguém precisa se submeter ao agressor.Essa luta é de todos e não só das vítimas.
há suficiente legislação para justificar quaiquer atitudes contra a violência.Não há uma agressão sequer que não seja proibida por lei.Portanto,resta a busca do elo entre a lei e a efetiva cessação dos atos violentos.Esse elo só pode ser formado se ninguém ficar omisso.Violência é problema de todos.Esse elo depende de uma postura ativa da vítima,e a atitude mais importante e primordial é a procura de ajuda,pois a maioria das violências existe sob o manto do silêncio e da discrição,a expensas de um coração angustiado,em constante tortura.
Não tenha medo nem receio o próximo nesse desafio.Ela é assegurada pela lei dos homens e pela Lei de Deus,mas há um elo que pende de cada um que está diante da violência.
Luigi Braga é advogado em Brasília